Malone Morre

Samuel Beckett - Malone Morre

As frases iniciais de algumas histórias muitas vezes ganham fama própria. Pode ser por seu choque de estranheza, como em A Metamorfose, pela trivialidade da abertura, como em Mrs. Dalloway ou, ao contrário, pelo seu tom sentencioso, como em Anna Kariênina.

Samuel Beckett também é capaz de começos notáveis. Pensando nos três romances do pós-guerra — Molloy, Malone Morre e O Inominável — o mais impactante é, sem dúvida, o do último deles.

Ao abrirmos o livro, somos confrontados pela dúvida sobre os elementos mais básicos das narrativas: “Onde agora? Quando agora? Quem agora?”.

O começo de Malone Morre, embora em tom menos intenso, expõe e ao mesmo tempo encobre os elementos principais do jogo que inicia: “Estarei em breve apesar de tudo completamente morto enfim.”

A previsão da morte — já encontrada desde o título — está cercada de advérbios que a desestabilizam. “Em breve” é impreciso; “apesar de tudo”, indeterminado; “completamente” anuncia que algo dessa morte já está em curso, mas não se sabe quanto; “enfim” fecha o ciclo e dá, com ironia, a nota de alívio, ao assegurar o cumprimento da previsão.

Revelar o próprio final contribui para que Malone estabeleça seu começo, que tem muito a ver com o fim de Molloy, protagonista da primeira parte do romance anterior. Molloy termina seu relato ao sair de uma floresta, onde se perdera.

Malone lembra-se de ter estado numa floresta e perdido a consciência. Também se lembra de ter chegado ao quarto onde se encontra da mesma forma que Molloy chegara ao quarto de sua mãe, e com as mesmas palavras: “Numa ambulância talvez, num veículo qualquer certamente”.

Ambos começam a escrever confinados nesses quartos, depois de terem perdido a capacidade de locomoção. Mas nessas lembranças de Malone prevalecem dúvidas, falta de confiança na memória e a impressão de que essas histórias poderiam pertencer a outros.

Interessante observar que Molloy tinha uma preocupação muito grande com as mentiras, expunha a todo momento os falseamentos a que submetia a narrativa, as descrições, sua própria narração, sua própria linguagem.

Malone não se incomoda tanto com a mentira. Concentra suas queixas na dificuldade de livrar-se de si mesmo, que o impede de ter sucesso na criação de um outro. Inventar um ser independente, uma vida alheia, é seu objetivo fundamental.

Malone logo se diz “artista”; seu projeto, enquanto espera pela morte, é claro. Vai contar histórias a si mesmo: “Não serão histórias nem bonitas nem feias, calmas, não haverá mais nelas nem feiura, nem beleza, nem febre, serão quase sem vida, como o artista”. Vai fazer o inventário das coisas que lhe restam.

Também vai dizer algo sobre sua situação atual e, a partir daí, as modificações que introduz no projeto inicial não param. O tempo de Malone agora se resume a “Viver e inventar”.

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Samuel Beckett – Malone Morre

As frases iniciais de algumas histórias muitas vezes ganham fama própria. Pode ser por seu choque de estranheza, como em A Metamorfose, pela trivialidade da abertura, como em Mrs. Dalloway ou, ao contrário, pelo seu tom sentencioso, como em Anna Kariênina.

Samuel Beckett também é capaz de começos notáveis. Pensando nos três romances do pós-guerra — Molloy, Malone Morre e O Inominável — o mais impactante é, sem dúvida, o do último deles.

Ao abrirmos o livro, somos confrontados pela dúvida sobre os elementos mais básicos das narrativas: “Onde agora? Quando agora? Quem agora?”.

O começo de Malone Morre, embora em tom menos intenso, expõe e ao mesmo tempo encobre os elementos principais do jogo que inicia: “Estarei em breve apesar de tudo completamente morto enfim.”

A previsão da morte — já encontrada desde o título — está cercada de advérbios que a desestabilizam. “Em breve” é impreciso; “apesar de tudo”, indeterminado; “completamente” anuncia que algo dessa morte já está em curso, mas não se sabe quanto; “enfim” fecha o ciclo e dá, com ironia, a nota de alívio, ao assegurar o cumprimento da previsão.

Revelar o próprio final contribui para que Malone estabeleça seu começo, que tem muito a ver com o fim de Molloy, protagonista da primeira parte do romance anterior. Molloy termina seu relato ao sair de uma floresta, onde se perdera.

Malone lembra-se de ter estado numa floresta e perdido a consciência. Também se lembra de ter chegado ao quarto onde se encontra da mesma forma que Molloy chegara ao quarto de sua mãe, e com as mesmas palavras: “Numa ambulância talvez, num veículo qualquer certamente”.

Ambos começam a escrever confinados nesses quartos, depois de terem perdido a capacidade de locomoção. Mas nessas lembranças de Malone prevalecem dúvidas, falta de confiança na memória e a impressão de que essas histórias poderiam pertencer a outros.

Interessante observar que Molloy tinha uma preocupação muito grande com as mentiras, expunha a todo momento os falseamentos a que submetia a narrativa, as descrições, sua própria narração, sua própria linguagem.

Malone não se incomoda tanto com a mentira. Concentra suas queixas na dificuldade de livrar-se de si mesmo, que o impede de ter sucesso na criação de um outro. Inventar um ser independente, uma vida alheia, é seu objetivo fundamental.

Malone logo se diz “artista”; seu projeto, enquanto espera pela morte, é claro. Vai contar histórias a si mesmo: “Não serão histórias nem bonitas nem feias, calmas, não haverá mais nelas nem feiura, nem beleza, nem febre, serão quase sem vida, como o artista”. Vai fazer o inventário das coisas que lhe restam.

Também vai dizer algo sobre sua situação atual e, a partir daí, as modificações que introduz no projeto inicial não param. O tempo de Malone agora se resume a “Viver e inventar”.

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