Relíquias De Casa Velha

Relíquias De Casa Velha, de Machado De Assis, reúne escritos de natureza muito diversa, oferecendo ao leitor um punhado de contos, nove ao todo.

Relíquias De Casa Velha (1906) é a última coletânea de textos publicada por Machado de Assis, dois anos apenas antes de morrer. Reunindo escritos de natureza muito diversa - a começar pelo belíssimo soneto "A Carolina", testemunho comoventemente autobiográfico da própria viuvez -, oferece ao leitor um punhado de contos, nove ao todo.

Dos nove contos, apenas quatro foram veiculados na imprensa: "Evolução" (Gazeta de Notícias, 24 de junho de 1884), "Maria Cora" (A Estação, entre janeiro e março de 1898, com o título de "O relógio parado"), "Pílades e Orestes" e "Anedota do cabriolé" (ambos no Almanaque Brasileiro Garnier, o primeiro em 1903, o segundo, em 1905).

Os demais cinco contos, segundo José Galante de Sousa afirma na sua Bibliografia de Machado de Assis (ainda hoje a mais autorizada fonte no que diz respeito às datas e locais de publicação dos textos de Machado de Assis), são todos inéditos: "Pai contra mãe", "Marcha Fúnebre", "Um capitão de voluntários", "Suje-se gordo!" e "Umas férias".

Como nos demais livros de contos, o título no plural aponta para a diversidade temática das histórias, para o caráter, por assim dizer, avulso das peças, diversidade para a qual o próprio autor chama atenção na "Advertência".

O conto de abertura de Relíquias De Casa Velha, "Pai contra mãe", que muitos historiadores consideram, apesar de seu estatuto de ficção, como fiel reconstituição de época - a época pré-Abolição, em que se caçavam escravos fujões pelas ruas do Rio de Janeiro, com todo o horror que isso implica - , dialoga em linha direta com a história que abre Páginas recolhidas, "O caso da vara".

Ambos são peças de denúncia do regime escravagista, coisa, aliás, rara na ficção de Machado de Assis, vindo à tona só incidentalmente nos romances, como, por exemplo, o caso do moleque Prudêncio de Memórias póstumas de Brás Cubas que, uma vez liberto por Brás, compra para si um escravo que submete aos mesmos maus tratos de que fora vítima quando seu ex-dono o maltratava, em criança.

A história acentua a oposição cruel entre as situações do perseguidor, branco, chamado Cândido Neves (cuja mulher, também branca, como se não bastasse o nome do marido, chama-se Clara) e da escrava fugida, a mulata Arminda.

Cândido a persegue e captura para ganhar a recompensa do dono da escrava e, com aqueles cem mil-réis, comprar alimento para o filho recém-nascido, o que, como constatamos ao ler o conto, tem um conteúdo irônico avassalador. O silêncio que se instala depois da fala final de Candinho permanece na memória "auditiva" do leitor, que custa a recompor-se para prosseguir na leitura do livro.

A ironia volta a aflorar em outras histórias de Relíquias De Casa Velha. Pensamos em "Maria Cora" e "Um capitão de voluntários", atravessados por uma sensualidade explicitada de maneira pouco habitual no escritor "pudico" que foi Machado de Assis.

Em "Maria Cora", tanto a personagem-título, quanto personagens secundárias (Dolores e Prazeres), ambas amantes do marido de Maria Cora, são mulheres movidas a paixão.

Baste remeter o leitor para duas cenas do conto: a reação de Prazeres quando o narrador mata João da Fonseca e a de Maria Cora, quando, na última página do conto, o narrador lhe apresenta, como prova de que havia mesmo matado o marido que a traíra tantas vezes, os cabelos que cortara ao cadáver.

Há um fosso intransponível entre o desejo do narrador por Maria Cora (o qual fora capaz de matar por ela) e a paixão dela pelo marido. O narrador escamoteia a própria perplexidade diante da reação final da moça, não comenta nada: os fatos falam por si.

Em "Um capitão de voluntários", a personagem feminina, Maria, "que era um modelo de graças finas, toda vida, toda movimento", é também uma mulher sensualíssima e, como a Genoveva de "Noite de almirante" (Histórias sem data, de 1884), é completamente amoral.

Vivendo uma relação estável com X…, um dia sente-se atraída pelo jovem amigo do amante (o narrador da história), vive com ele uma paixão ardente e fugaz, enfastia-se, repudia-o. Veja o leitor a ironia final, que a pena destra de Machado de Assis resume num só adjetivo, "leal", inserido numa dedicatória de X… ao narrador do conto.

Em "Marcha fúnebre", o protagonista, Cordovil, pondo-se a conjeturar sobre a própria morte, diz desejá-la inesperada e rápida, mas, quando ela se anuncia, esquiva-se dela e, corroídas pelo medo de morrer, esboroa-se toda a sua "filosofia" sobre ela.

"Suje-se gordo!" problematiza não a amoralidade, que se pode dizer inocente, mas a imoralidade, que é sempre viciosa. O enredo apresenta um indivíduo que defende e põe em prática a ideia de que pequenos crimes merecem ser punidos porque lhes falta audácia e grandeza.

Sua filosofia se resume na frase-título: se se trata de cometer um delito (no caso em questão, um desfalque), que se faça isto em grande estilo. A imoralidade triunfa, e o efeito, por assim dizer "cômico" do conto é corroído, deixando outra vez no leitor um travo amargo de desconforto ético, embora, como quase sempre, Machado dê um jeito de terminar o conto de maneira leve, com um gracejo.

"Umas férias" visita o universo infantil, como acontecera em "Conto de escola", de Várias histórias (1896). Note-se, no entanto, que, em ambos, as personagens são crianças, mas os temas abordados são de adulto. "Conto de escola" fala de corrupção e de delação, "Umas férias" fala da morte.

O que é estranho e inquietante é essas questões serem tratadas a partir de um narrador menino. É como se, da incompatibilidade entre o assunto narrado e quem o narra, surgisse a possibilidade de melhor abordá-lo, a partir da inocência, que leva o menino narrador de "Umas férias" a experimentar "uma grande alegria sem férias", quando afinal lhe permitem voltar à escola.

Sob o título "Evolução", o narrador conta a história de como evolui, na mente de um conhecido seu, a gradual de apropriação de uma ideia que era, na verdade, dele, narrador.

Imediatamente o leitor (tanto o de A Estação, em 1884, quanto o de Relíquias De Casa Velha, em 1906) associa o título com o evolucionismo de Darwin e Spencer, e o conto evolui para um final desconcertante, em que fica mais do que patente o ceticismo machadiano em relação a qualquer teoria, a qualquer explicação que desse sentido à existência humana.

As cinco palavras da última frase são demolidoras, ainda que ditas em tom ligeiro, quase de brincadeira.

"Pílades e Orestes" e "Anedota do cabriolé" encerram a coleção, e tocam ambos em tabus sociais: a homossexualidade e o incesto.

No primeiro, dois amigos, Quintanilha e Gonçalves, são inseparáveis, e embora não haja no mito, nem tampouco na tragédia grega de Electra, de que Machado toma emprestados os nomes que dão título ao conto, nenhuma implicação de homossexualismo entre as duas personagens, e embora no conto Quintanilha (Pílades) se sacrifique pelo amigo, a quem cede a noiva (que era sua prima) e a fortuna (quando no mito é Pílades quem se casa com a irmã de Orestes), a história permite que se infira que, há pelo menos de Quintanilha em relação a Gonçalves, uma inclinação que vai além da amizade.

E, como jamais as coisas são simples ou unívocas nas narrativas machadianas, o conto deixa também no leitor a suspeita de que Gonçalves (Orestes) manipula o amigo o tempo todo, e como que alimenta a sua dedicação desmesurada, sabendo dela tirar todo proveito.

Quanto a "Anedota do cabriolé", trata-se da história de um casal que vem fugido para o Rio de Janeiro, para aqui morrer, como se esse destino estivesse predeterminado, espécie de castigo divino por serem irmãos e, sabendo-se irmãos, continuarem a amar-se como homem e mulher. Na verdade, "Anedota do cabriolé" é uma história sobre a bisbilhotice, aqui encarnada no sacristão João das Mercês.

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Relíquias De Casa Velha, de Machado De Assis, reúne escritos de natureza muito diversa, oferecendo ao leitor um punhado de contos, nove ao todo.

Relíquias De Casa Velha (1906) é a última coletânea de textos publicada por Machado de Assis, dois anos apenas antes de morrer. Reunindo escritos de natureza muito diversa – a começar pelo belíssimo soneto “A Carolina”, testemunho comoventemente autobiográfico da própria viuvez -, oferece ao leitor um punhado de contos, nove ao todo.

Dos nove contos, apenas quatro foram veiculados na imprensa: “Evolução” (Gazeta de Notícias, 24 de junho de 1884), “Maria Cora” (A Estação, entre janeiro e março de 1898, com o título de “O relógio parado”), “Pílades e Orestes” e “Anedota do cabriolé” (ambos no Almanaque Brasileiro Garnier, o primeiro em 1903, o segundo, em 1905).

Os demais cinco contos, segundo José Galante de Sousa afirma na sua Bibliografia de Machado de Assis (ainda hoje a mais autorizada fonte no que diz respeito às datas e locais de publicação dos textos de Machado de Assis), são todos inéditos: “Pai contra mãe”, “Marcha Fúnebre”, “Um capitão de voluntários”, “Suje-se gordo!” e “Umas férias”.

Como nos demais livros de contos, o título no plural aponta para a diversidade temática das histórias, para o caráter, por assim dizer, avulso das peças, diversidade para a qual o próprio autor chama atenção na “Advertência”.

O conto de abertura de Relíquias De Casa Velha, “Pai contra mãe”, que muitos historiadores consideram, apesar de seu estatuto de ficção, como fiel reconstituição de época – a época pré-Abolição, em que se caçavam escravos fujões pelas ruas do Rio de Janeiro, com todo o horror que isso implica – , dialoga em linha direta com a história que abre Páginas recolhidas, “O caso da vara”.

Ambos são peças de denúncia do regime escravagista, coisa, aliás, rara na ficção de Machado de Assis, vindo à tona só incidentalmente nos romances, como, por exemplo, o caso do moleque Prudêncio de Memórias póstumas de Brás Cubas que, uma vez liberto por Brás, compra para si um escravo que submete aos mesmos maus tratos de que fora vítima quando seu ex-dono o maltratava, em criança.

A história acentua a oposição cruel entre as situações do perseguidor, branco, chamado Cândido Neves (cuja mulher, também branca, como se não bastasse o nome do marido, chama-se Clara) e da escrava fugida, a mulata Arminda.

Cândido a persegue e captura para ganhar a recompensa do dono da escrava e, com aqueles cem mil-réis, comprar alimento para o filho recém-nascido, o que, como constatamos ao ler o conto, tem um conteúdo irônico avassalador. O silêncio que se instala depois da fala final de Candinho permanece na memória “auditiva” do leitor, que custa a recompor-se para prosseguir na leitura do livro.

A ironia volta a aflorar em outras histórias de Relíquias De Casa Velha. Pensamos em “Maria Cora” e “Um capitão de voluntários”, atravessados por uma sensualidade explicitada de maneira pouco habitual no escritor “pudico” que foi Machado de Assis.

Em “Maria Cora”, tanto a personagem-título, quanto personagens secundárias (Dolores e Prazeres), ambas amantes do marido de Maria Cora, são mulheres movidas a paixão.

Baste remeter o leitor para duas cenas do conto: a reação de Prazeres quando o narrador mata João da Fonseca e a de Maria Cora, quando, na última página do conto, o narrador lhe apresenta, como prova de que havia mesmo matado o marido que a traíra tantas vezes, os cabelos que cortara ao cadáver.

Há um fosso intransponível entre o desejo do narrador por Maria Cora (o qual fora capaz de matar por ela) e a paixão dela pelo marido. O narrador escamoteia a própria perplexidade diante da reação final da moça, não comenta nada: os fatos falam por si.

Em “Um capitão de voluntários”, a personagem feminina, Maria, “que era um modelo de graças finas, toda vida, toda movimento”, é também uma mulher sensualíssima e, como a Genoveva de “Noite de almirante” (Histórias sem data, de 1884), é completamente amoral.

Vivendo uma relação estável com X…, um dia sente-se atraída pelo jovem amigo do amante (o narrador da história), vive com ele uma paixão ardente e fugaz, enfastia-se, repudia-o. Veja o leitor a ironia final, que a pena destra de Machado de Assis resume num só adjetivo, “leal”, inserido numa dedicatória de X… ao narrador do conto.

Em “Marcha fúnebre”, o protagonista, Cordovil, pondo-se a conjeturar sobre a própria morte, diz desejá-la inesperada e rápida, mas, quando ela se anuncia, esquiva-se dela e, corroídas pelo medo de morrer, esboroa-se toda a sua “filosofia” sobre ela.

“Suje-se gordo!” problematiza não a amoralidade, que se pode dizer inocente, mas a imoralidade, que é sempre viciosa. O enredo apresenta um indivíduo que defende e põe em prática a ideia de que pequenos crimes merecem ser punidos porque lhes falta audácia e grandeza.

Sua filosofia se resume na frase-título: se se trata de cometer um delito (no caso em questão, um desfalque), que se faça isto em grande estilo. A imoralidade triunfa, e o efeito, por assim dizer “cômico” do conto é corroído, deixando outra vez no leitor um travo amargo de desconforto ético, embora, como quase sempre, Machado dê um jeito de terminar o conto de maneira leve, com um gracejo.

“Umas férias” visita o universo infantil, como acontecera em “Conto de escola”, de Várias histórias (1896). Note-se, no entanto, que, em ambos, as personagens são crianças, mas os temas abordados são de adulto. “Conto de escola” fala de corrupção e de delação, “Umas férias” fala da morte.

O que é estranho e inquietante é essas questões serem tratadas a partir de um narrador menino. É como se, da incompatibilidade entre o assunto narrado e quem o narra, surgisse a possibilidade de melhor abordá-lo, a partir da inocência, que leva o menino narrador de “Umas férias” a experimentar “uma grande alegria sem férias”, quando afinal lhe permitem voltar à escola.

Sob o título “Evolução”, o narrador conta a história de como evolui, na mente de um conhecido seu, a gradual de apropriação de uma ideia que era, na verdade, dele, narrador.

Imediatamente o leitor (tanto o de A Estação, em 1884, quanto o de Relíquias De Casa Velha, em 1906) associa o título com o evolucionismo de Darwin e Spencer, e o conto evolui para um final desconcertante, em que fica mais do que patente o ceticismo machadiano em relação a qualquer teoria, a qualquer explicação que desse sentido à existência humana.

As cinco palavras da última frase são demolidoras, ainda que ditas em tom ligeiro, quase de brincadeira.

“Pílades e Orestes” e “Anedota do cabriolé” encerram a coleção, e tocam ambos em tabus sociais: a homossexualidade e o incesto.

No primeiro, dois amigos, Quintanilha e Gonçalves, são inseparáveis, e embora não haja no mito, nem tampouco na tragédia grega de Electra, de que Machado toma emprestados os nomes que dão título ao conto, nenhuma implicação de homossexualismo entre as duas personagens, e embora no conto Quintanilha (Pílades) se sacrifique pelo amigo, a quem cede a noiva (que era sua prima) e a fortuna (quando no mito é Pílades quem se casa com a irmã de Orestes), a história permite que se infira que, há pelo menos de Quintanilha em relação a Gonçalves, uma inclinação que vai além da amizade.

E, como jamais as coisas são simples ou unívocas nas narrativas machadianas, o conto deixa também no leitor a suspeita de que Gonçalves (Orestes) manipula o amigo o tempo todo, e como que alimenta a sua dedicação desmesurada, sabendo dela tirar todo proveito.

Quanto a “Anedota do cabriolé”, trata-se da história de um casal que vem fugido para o Rio de Janeiro, para aqui morrer, como se esse destino estivesse predeterminado, espécie de castigo divino por serem irmãos e, sabendo-se irmãos, continuarem a amar-se como homem e mulher. Na verdade, “Anedota do cabriolé” é uma história sobre a bisbilhotice, aqui encarnada no sacristão João das Mercês.

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