Qualquer Coisa Serve

Toda pessoa – ao menos todo escritor – tem lá suas preocupações. Uma das minhas é com o mal, tema perenemente importante e, se formos honestos, também perenemente interessante.
Fora a natural atração que ele exerce, meu interesse pelo assunto tem origem em três conjunturas biográficas.


A primeira vem do fato de minha mãe ter trocado a Alemanha nazista pela Inglaterra aos dezoito ou dezenove anos. Ela nunca voltou a ver os pais e jamais falou sobre aquilo que vira ou experimentara.
Outros sofreram muito mais do que ela, sem dúvida; não obstante, cresci com a subliminar ciência de que os grandes acontecimentos – isto é, os acontecimentos terríveis – do século XX não estavam tão distantes da plácida existência burguesa como se poderia imaginar.
A segunda é o fato de eu ter nutrido, na juventude e no início da vida adulta, certo gosto pelo perigo. Não se tratava, porém, daquele tipo de perigo relacionado a carros esportivos e velozes (muito embora eu dirigisse o mais rápido que pudesse), mas do perigo político.
Eu gostava de viajar rumo a guerras civis e ditaduras, o que fazia sumir de minha cabeça a névoa ou cerração da angústia adolescente. Ninguém se preocupa muito com quem é quando há sérias possibilidades de ser preso ou baleado.
Não é preciso dizer que, naqueles regimes capazes de dissolver tal angústia (a minha, e não a dos milhões de pessoas que tinham de morar permanentemente ali e que, ao contrário de mim, não podiam escapar quando bem entendessem), observei que o mal fora posto em liberdade e prosperara incrivelmente.
Ele se impunha à minha consciência porque era inevitável. As pessoas eram capazes de matar, massacrar ou torturar com uma sensação de propósito – quase de dever –, e não sem contentamento. Onde tudo era questão de vida ou morte, a morte prevaleceu.
Se o sono da razão evoca monstros, também o faz, se não o crescimento excessivo da razão propriamente dita, ao menos o crescimento excessivo da racionalização. Pouquíssimas são as coisas que não podem ser justificadas com um pouco de sofística.

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A primeira vem do fato de minha mãe ter trocado a Alemanha nazista pela Inglaterra aos dezoito ou dezenove anos. Ela nunca voltou a ver os pais e jamais falou sobre aquilo que vira ou experimentara.
Outros sofreram muito mais do que ela, sem dúvida; não obstante, cresci com a subliminar ciência de que os grandes acontecimentos – isto é, os acontecimentos terríveis – do século XX não estavam tão distantes da plácida existência burguesa como se poderia imaginar.
A segunda é o fato de eu ter nutrido, na juventude e no início da vida adulta, certo gosto pelo perigo. Não se tratava, porém, daquele tipo de perigo relacionado a carros esportivos e velozes (muito embora eu dirigisse o mais rápido que pudesse), mas do perigo político.
Eu gostava de viajar rumo a guerras civis e ditaduras, o que fazia sumir de minha cabeça a névoa ou cerração da angústia adolescente. Ninguém se preocupa muito com quem é quando há sérias possibilidades de ser preso ou baleado.
Não é preciso dizer que, naqueles regimes capazes de dissolver tal angústia (a minha, e não a dos milhões de pessoas que tinham de morar permanentemente ali e que, ao contrário de mim, não podiam escapar quando bem entendessem), observei que o mal fora posto em liberdade e prosperara incrivelmente.
Ele se impunha à minha consciência porque era inevitável. As pessoas eram capazes de matar, massacrar ou torturar com uma sensação de propósito – quase de dever –, e não sem contentamento. Onde tudo era questão de vida ou morte, a morte prevaleceu.
Se o sono da razão evoca monstros, também o faz, se não o crescimento excessivo da razão propriamente dita, ao menos o crescimento excessivo da racionalização. Pouquíssimas são as coisas que não podem ser justificadas com um pouco de sofística.

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