O Alfaiate De Ulm

Durante uma das lotadas assembleias em que se deveria decidir a mudança de nome do Partido Comunista Italiano (PCI), um camarada perguntou a Pietro Ingrao: “Depois de tudo que aconteceu e está acontecendo, você realmente acredita que a palavra comunista ainda possa definir um grande partido democrático

e de massas como nós fomos e ainda somos, e que essa palavra ainda possa servir para o partido que queremos renovar e fortalecer, a fim de levá-lo ao governo do país?”.
Ingrao – que já havia exposto amplamente as razões de sua divergência com Occhetto e proposto outro rumo –, em tom de brincadeira, mas ao mesmo tempo sério, respondeu com o famoso apólogo de Bertolt Brecht, O alfaiate de Ulm. O artesão, obcecado pela ideia de construir um aparelho que permitisse ao homem voar, um dia, convencido de ter alcançado seu objetivo, apresentou-se ao bispo e disse: “Aqui está: posso voar”. O bispo conduziu-o até a janela do alto palácio e desafiou-o a demonstrar. O alfaiate lançou-se e, obviamente, espatifou-se nos ladrilhos. Todavia, comenta Brecht, alguns séculos depois os homens realmente conseguiram voar.
Eu, que estava presente, achei a resposta de Ingrao não só arguta, mas fundamentada. Quanto tempo, quantas lutas cruentas, quantos avanços e quantas derrotas foram necessários ao sistema capitalista – em uma Europa ocidental inicialmente mais atrasada e barbárica do que outras regiões do mundo – para finalmente encontrar uma eficiência econômica nunca alcançada antes, dotar-se de instituições políticas mais abertas, alcançar uma cultura mais racional?
Quais contradições irredutíveis marcaram, durante séculos, o liberalismo, entre ideais afirmados solenemente (a natureza humana comum, a liberdade de pensamento e de expressão, a soberania outorgada ao povo) e práticas que os desmentiam em permanência (escravidão, dominação colonial, expulsão de camponeses das terras comunais, guerras de religião)?
Contradições de fato, mas legitimadas no pensamento: a ideia de que somente poderiam e deveriam ter acesso à liberdade os que tivessem, por censo e cultura, e até por raça e cor, a capacidade de exercê-la com sabedoria; e a ideia correlata de que a propriedade de bens era um direito absoluto e intocável e excluía, portanto, o sufrágio universal.

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Durante uma das lotadas assembleias em que se deveria decidir a mudança de nome do Partido Comunista Italiano (PCI), um camarada perguntou a Pietro Ingrao: “Depois de tudo que aconteceu e está acontecendo, você realmente acredita que a palavra comunista ainda possa definir um grande partido democrático e de massas como nós fomos e ainda somos, e que essa palavra ainda possa servir para o partido que queremos renovar e fortalecer, a fim de levá-lo ao governo do país?”.
Ingrao – que já havia exposto amplamente as razões de sua divergência com Occhetto e proposto outro rumo –, em tom de brincadeira, mas ao mesmo tempo sério, respondeu com o famoso apólogo de Bertolt Brecht, O alfaiate de Ulm. O artesão, obcecado pela ideia de construir um aparelho que permitisse ao homem voar, um dia, convencido de ter alcançado seu objetivo, apresentou-se ao bispo e disse: “Aqui está: posso voar”. O bispo conduziu-o até a janela do alto palácio e desafiou-o a demonstrar. O alfaiate lançou-se e, obviamente, espatifou-se nos ladrilhos. Todavia, comenta Brecht, alguns séculos depois os homens realmente conseguiram voar.
Eu, que estava presente, achei a resposta de Ingrao não só arguta, mas fundamentada. Quanto tempo, quantas lutas cruentas, quantos avanços e quantas derrotas foram necessários ao sistema capitalista – em uma Europa ocidental inicialmente mais atrasada e barbárica do que outras regiões do mundo – para finalmente encontrar uma eficiência econômica nunca alcançada antes, dotar-se de instituições políticas mais abertas, alcançar uma cultura mais racional?
Quais contradições irredutíveis marcaram, durante séculos, o liberalismo, entre ideais afirmados solenemente (a natureza humana comum, a liberdade de pensamento e de expressão, a soberania outorgada ao povo) e práticas que os desmentiam em permanência (escravidão, dominação colonial, expulsão de camponeses das terras comunais, guerras de religião)?
Contradições de fato, mas legitimadas no pensamento: a ideia de que somente poderiam e deveriam ter acesso à liberdade os que tivessem, por censo e cultura, e até por raça e cor, a capacidade de exercê-la com sabedoria; e a ideia correlata de que a propriedade de bens era um direito absoluto e intocável e excluía, portanto, o sufrágio universal.

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