O século XX, especialmente a primeira metade, foi o ambiente histórico propício para a construção de ficções utópicas e distópicas.
Afinal, foi o século que viu o avanço da máquina a vapor ao microchip; proporcionou as imensas mudanças culturais, econômicas e política; vivenciou a polarização entre comunismo e capitalismo, as revoluções; testemunhou o avanço científico, na cura de doenças que antes desafiavam a morte; e as guerras mais sangrentas que a humanidade já deflagrou.
Nesse contexto, resolver ou esgarçar os problemas da sociedade por meio de um esforço imaginativo era o esporte favorito de grandes escritores do período — construir milimetricamente sistemas políticos, econômicos e sociais que questionassem o atual estado das coisas.
O desafio na construção desse tipo de ficção é claro. Não existe utopia totalizante que abarque a diversidade de todas as pessoas, assim como não existe distopia em que as suas regras não agradem uma ou outra alma.
O germe de uma distopia necessariamente dorme dentro de uma utopia e vice-versa, como num símbolo oriental representando o Yin e Yang.
A estrutura dessas narrativas ficcionais utópicas e distópicas se torna, então, fundamentalmente falha, afinal não existe horror absoluto, assim como não existe paraíso absoluto que satisfaça a todos, o que torna Charlotte Perkins Gilman, autora de Terra Das Mulheres, uma ficcionista de coragem ao ousar tocar em um dos temas mais difíceis que o gênero literário pode abordar: a igualdade.
Como não poderia deixar de ser, Terra Das Mulheres, escrito em 1915, é uma utopia firmemente alinhada com o seu tempo, e suas limitações são claras. Para compreendermos melhor essas limitações, recorro ao filósofo italiano Norberto Bobbio. Ele elaborou duas questões pertinentes para pensarmos em igualdade.
A primeira é “Igualdade entre quem?” e a segunda, “Igualdade em relação a quê?”. E Charlotte Perkins Gilman é bem clara ao responder essas perguntas. Igualdade entre homens e mulheres brancos e heterossexuais, e igualdade em relação aos direitos civis nos países urbanizados e ditos de primeiro mundo.
Charlotte Perkins Gilman constrói uma história narrada em primeira pessoa por um personagem masculino, Vandyck Jennings, que em uma expedição exploratória a uma floresta tropical no hemisfério sul encontra, junto com seus companheiros, um país composto exclusivamente de cidadãs, que fundaram uma sociedade racional, asséptica e aparentemente assexuada, onde bebês nascem por geração espontânea, unicamente por meio do desejo das mulheres que lá vivem.
A escolha da autora por um narrador masculino se mostra um recurso interessante. É através de Vandyck e suas observações a respeito da perplexidade de seus camaradas, o doce Jeff e o machão Terry, que as contradições e convenções sociais arbitrárias às quais são submetidas as mulheres de seu país de origem, os Estados Unidos, são reveladas.
A perplexidade das tutoras designadas para guiá-los pelo País das Mulheres, diante dos relatos do que seria uma sociedade com ambos os sexos, é palpável e mostra também a perplexidade da autora — uma mulher de família burguesa e bem-educada — diante das limitações que seu gênero impõe a ela, mesmo estando em uma posição de privilégio, educação e boas relações.