Ao abordar a obra de Édouard Glissant e Mia Couto, a autora deste livro fala da situação atual que nos envolve: a dos processos de hibridização que se processam em escala planetária, nivelando tensões e pasteurizando diferenças.
Ao romper com esse contexto, releva a produtividade das formas não afeitas à lógica estandardizadora e unidirecional dos fluxos comunicativos, procurando destacar estratégias discursivas contra-hegemônicas, tal como se descortinam nas obras desses autores que lhe servem de referência. São caminhos que traçam pontos de união entre as nações colonizadas pela Europa, em especial as de marcada presença africana, como Martinica e Moçambique.
Trata-se de uma tese sobre a crioulização, entendida como mestiçagem não unívoca, sintética, ao gosto lusotropicalista. Uma mestiçagem onde os pedaços de cultura deglutidos mantêm um núcleo resistente, que dá sempre lugar a novas nuances e tonalidades à mistura.
O pensamento de Glissant se formou na atmosfera das lutas anticoloniais, afim de Frantz Fanon, não aceitando os limites étnicos da negritude dos anos 30/40. Situou-se numa perspectiva independente de análise crítica do marxismo e de reflexão sobre o colonialismo. Seu objeto é a mesclagem cultural vista a partir da experiência de seu país, marcado pela diáspora africana. Mia Couto está em Moçambique, mas sua análise crítica do marxismo segue perspectivas parecidas.
Não aceita formulações dogmáticas e nem as certezas de uma inevitável síntese redentora. O leitor poderá verificar neste instigante estudo de Enilce Albergaria que em Mia Couto, como em Glissant, o futuro mostra-se problemático, mas não deixa de ser da natureza das coisas que ele também seja polifacetado, plurívoco.
É necessário “desarrumar” para ver o futuro embutido no presente, como a autora procura descortinar nos textos de Glissant e de Mia Couto, dos fatos linguísticos às imagens identitárias, sejam elas individuais ou nacionais. No vigoroso pensamento teórico de Glissant, onde o literário leva a intuir processos que a reflexão crítica procura tornar objetivos, o diverso dessas culturas híbridas opõe-se ao uno da estandardização globalizadora.
Não aceita os parâmetros impostos pela cultura dita ocidental, dos países hegemônicos, como universais. Se a cultura é um constructo e tem suas bases na hegemonia, é importante que os povos periféricos também reinventem seus passados, não com formulações mitológicas, mas a partir de suas experiências históricas.