Levando em conta o espaço literário em que se desdobra a poesia visual, e no qual se inclui a poesia concreta, Um Enlace De Três compara obras de três autores brasileiros: um que tem boa parte de suas produções poéticas situadas nesse território da visualidade (Augusto de Campos) e dois outros (Ana Cristina Cesar e, sobretudo, Arnaldo Antunes) que com o mesmo território dialogam, em períodos distintos, da década de 1950 em diante.
Certa feita, num desses papos de corredor que não levam longe, conversávamos eu e Douglas, e às tantas disse-lhe de um poema em forma oval de Ana Cristina Cesar.
Este papo foi longe: a Ana C. se somaram Augusto de Campos e Arnaldo Antunes – e toda uma trama se construiu em torno de “Gota a gota”, “Ovonovelo” e “Rio”.
Valendo-me do “enlace de três” que abre o título do livro de Douglas Salomão, recordo três visões de Roland Barthes: “Tenho uma doença: eu vejo a linguagem. Na primeira visão, o imaginário é simples: é o discurso de outro como eu o vejo (cerco-o de aspas). Depois, vejo minha linguagem sendo vista: vejo-a nua (sem aspas); a terceira é a das linguagens infinitamente escalonadas, parênteses nunca fechados”.
Em minha longa e fraterna convivência com Douglas, impressionou-me sempre a sua “saudável doença”, seus olhos de lince para a arte em geral e para a literatura em particular, transitando veloz entre o macro e o micro.
O excelente poeta nos traz agora, sob a capa do ensaísta, com a mesma lucidez, uma singular reflexão sobre a poesia visual, a partir de poemas de um trio de altíssimo quilate: Augusto, Ana C. e Arnaldo.
Verá o leitor, por conta própria, o que decisivamente afirmo: a escrita de Douglas exubera em clareza, correção, sensibilidade, perspicácia, agudeza, inteligência. A capacidade de ver o poema como que nascendo nos deslumbra (“como é que a pena sai da penumbra?”, perguntava Leminski).
E Douglas, diria Drummond, tem as chaves – porque ter as chaves é, para quem interpreta, o mesmo que inventar as chaves: desde que as portas se abram. (Às vezes, em lances também de mestria, quando a porta não abre com uma tal chave, Douglas reinventa a própria porta, e passamos, leitores, a crer na recémcriada porta.)
Este olhar-poeta se acumplicia do poema que vê, toma posse dele, do corpo dele, estende o afeto até o poeta. É patente a admiração de Douglas pelo “trio em A maior” (parodiando conto célebre de Machado).
Em raro momento, quando o ensaísta cede ao tom lírico, o texto ecoa, contemplando o salto: “E a poeta, em 29 de outubro de 1983, atirou-se de um prédio, talvez para descobrir os mistérios daquela brisa marinha que tanto a instigou”.
O texto de Douglas vai, passo a passo, nos desarmando, pois, com a paciência possível, dispõe as armas na mesa. Além de toda a parte dedicada a panoramas historiográficos (Poesia visual, Concretismo, Anos 70), com generosa exemplificação, os capítulos que se dedicam a “Ovonovelo”, “Gota a gota” e “Rio” são fascinantes, surpreendentes, orgásticos.
Estas análises são verdadeiras aulas de como domar um poema, de como tomar uma sopa sem queimar os lábios, de como restaurar cicatrizes.