
Paul Schreber, juiz presidente da corte de apelação de Dresden, faz a narrativa, em estilo brilhante, de todo o seu processo psicótico ao ser internado numa clínica da Universidade de Leipzig.
Ao tomar conhecimento dessas memórias em 1911, Sigmund Freud transformou-as em objeto de um dos grandes estudos existentes sobre paranóia. Desta maneira, Schreber passou a ser visto como um dos loucos mais famosos de que se tem conhecimento.
No início do séc XX, sujeitos excêntricos eram constantemente vigiados pelos olhos de uma sociedade altamente moralista e tradicional. Muitas vezes, comportamentos que desviassem do padrão eram sinônimo de ameaça para o sujeito que os praticava, com chances de viver até o fim da vida em um hospício e cair no absoluto anonimato.
Antes de Freud, de qualquer modalidade de talking cure e da psicofarmacologia, quem conseguisse escapar ao poder asilar e produzir uma marca interessante no meio social e cultural era um sujeito raro.
Daniel Paul Schreber definitivamente foi uma dessas raridades. Até os 51 anos, Schreber era um renomado juiz em Leipzig (Alemanha), extremamente culto e pai de família, quando foi nomeado ao cargo de juiz-presidente da corte de apelação.
Poucos dias depois começa a apresentar sinais de angústia e intensa insônia, e em seguida vivências alucinatórias, hipocondria, ideias de morte, culminando em uma longa internação (9 anos) na qual é diagnosticado com dementia paranoides.
O momento a partir do qual Schreber “vira o jogo” é quando toda a vivência esquizofrênica que atravessava seu corpo dá lugar a um complexo delírio à respeito de que seria mulher de Deus.
Embora o delírio seja de um conteúdo absurdo, ele deixa de tomar conta de toda a existência de Schreber, concentrando-se em um núcleo delirante e possibilitando assim o resgate de suas aptidões intelectuais, com as quais construiu uma autobiografia que é um verdadeiro tratado sobre a loucura de produção autoral: “Memórias de um doente de nervos”.
Com as ideias contidas neste livro, Schreber sustentou perante um rigoroso tribunal que teria condições de gozar novamente de seu lugar social, sem a internação e a curatela do Estado. E teve êxito, pelo menos por alguns anos.
Ao lermos esse livro temos a oportunidade de entrar em contato com uma minuciosa e rica descrição do fenômeno psicótico, da crise e do sujeito que tenta “amarrar” um delírio que lhe permita seguir vivendo.
Desta forma, o leitor tem em mãos o mesmo material com o qual Freud escreveu em 1911: “Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia”: o famoso “caso Schreber” em que desenvolveu boa parte do pensamento psicanalítico acerca da psicose.
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