
Transforma-se o amador na coisa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois consigo tal alma está ligada.
Mas esta linda e pura semidéia,
Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim como a alma minha se conforma,
Está no pensamento como idéia;
O vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples busca a forma.
(Luís de Camões)
O soneto acima há muito circula em espaços distintos de forma a lhe afetar as significações. Neste presente livro, que você tem em mãos, tal soneto, primeiramente, ajuda a dar nome à coletânea.
Como toda nomeação é um ato político, já que demarca posicionamento dentro do espaço híbrido e de disputas por poder que é o da linguagem, pensamos com o texto de Camões de forma a imaginar as possibilidades de contato entre filosofia e linguagem no contemporâneo, seja como espaço para colheita de corpus, seja como corpos que somos também afetados por tal cronotopo.
Ou seja, pensar e ser contemporâneo acabam se peformativizando como acontecimentos na e da linguagem, cujas percepções só se podem ser permitidas metalinguisticamente: nos interrogamos o que é possível acontecer, tendo em vista o que é possível, talvez, ser nesse espaço-tempo.
Assim, o que se entende como próprio ao contemporâneo só é legítimo porque o sujeito que reflete isso só o faz a partir de um olhar, de uma (in?)compreensão do que, como e de onde vive.
Especialmente, enunciar sobre o ”nosso tempo” permite, concomitantemente, nos interrogarmos o que permite que um sujeito diga sobre o espaço-tempo que ocupa e que efeitos isso gera.
Ao falar do contemporâneo e seus alcances ou faltas de sentido, o que o corpo pode querer?
Acaba que o sujeito que fala se converte naquilo que ele mesmo diz: não há separação, exterioridade total e claramente dissociável. Em outros termos, “transforma-se o amador na coisa amada”; com isso, temos, em nós, o contemporâneo porque somos capazes de falar dele, somos afetados por seus efeitos.
Se a fala constitui o corpo, se o corpo diz e escreve, o rastro enunciativo é uma dimensão corpórea, há algo do desejo que satura e se faz letra. Por isso, interagindo com os enunciados deixados de Camões, pensamos que ele, em certos usos e posições sociais de fala, nunca foi tão contemporâneo.











