
Sei que a Neuzamaria Kerner não agradaria o papel de vivandeira. Por seu ímpeto sul baiano, por sua apetência para a vida, que é uma virtude muito grapiúna, ela mereceria um lugar num dos regimentos napoleônicos.
Não para escravizar povos, decerto — senão para gastar um pouco do ardor que a consome. Nasceu inquieta, a moça, e está mais inquieta, agora que lhe tolhem os movimentos e a vontade, num mundo que ela não fez, como disse o poeta Housman. O que fazer, então?
Ora, ela faz o que todos nós, criadores, fazemos: desabafar sobre uma folha de papel.
Eis alguns dos seus gritos, que são quase jeremiadas de Evas acorrentadas: o livre-arbítrio é substituído pelo livro-arbítrio, e este não lhe podem calar, por ser matéria de sonho, território imune a intervenções malignas.
A arte literária talvez não mais enseje a glória e a honra a que se referiu Machado de Assis, mas consola. É linimento e bálsamo.
Os poemas de Neuzamaria Kerner são em geral curtos. Sua poesia tende ao monólogo, que a faz interrogar e interrogar- se. O eu é um microcosmo em que se refletem os mistérios e incertezas do mundo, da vida, da personalidade.
O poeta trabalha à beira do precipício. Às vezes, já tombou nele e se agarra a uma ponta de pedra. Artes e equilibrista. Dali, condenado sempre a indagar — porque a Prometeu acorrentaram o corpo, mas destravaram a mente e a língua —, o poeta tenta sumarizar seus lampejos em discursos conceituais, quase aforísticos.
A autora de O Livro-Arbítrio Das Evas é dada a jogos vocabulares que exprimem a ânsia de imprimir nota nova à dicção poética. Ela está em busca de uma expressão, que, a essa altura, já traz toque pessoal.
“A Morte de Cinderela” é uma refl exão sobre os desencantos. Um poema como “Barqueiro do Rio Pardo” mostra a poeta em duas viagens: a factual, que é menos significativa, e a outra, interior, que é, de fato, significante, em que Neuzamaria está vindo de si, de dentro de si — e traz certamente algo colhido num desses relâmpagos em que parecemos captar uma verdade existencial.
