
A primeira impressão que Servidões provoca em quem acabou de ler o livro talvez se deixe dizer melhor numa expressão inglesa: he did it again.
Mais uma vez, depois de a energia e a capacidade de inovação de A Faca Não Corta o Fogo terem assombrado os que não julgavam possível uma tal voltagem poética num autor de 80 anos, Herberto Helder repete o milagre.
Servidões abre com um texto em prosa construído a partir de três textos anteriores: o mais antigo aparecia a abrir Edoi Lelia Doura, a “antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa” que o autor organizou em 1985, e os restantes tinham surgido respectivamente na publicação brasileira Cult e na Telhados de Vidro, a revista da editora Averno.
É significativo que Herberto Helder tenha querido iniciar este livro com um texto marcadamente autobiográfico, que começa com a sua infância na Madeira, povoada de “visões” e “vozes” que terão contribuído para selar precocemente o seu destino de poeta, e não por acaso de um poeta que acredita, sem ironia, nos poderes da poesia, como outrora, em criança, acreditou nas “enigmáticas figuras” de animais que a seiva das bananeiras deixava na lâmina de uma faca, ou nos raios que atingiriam os espelhos se não houvesse a prudência, “em tempo de trovoadas”, de os cobrir com lençóis.
O texto termina com esta passagem: “Cumprira-se aquilo que eu sempre desejara – uma vida subtil, unida e invisível que o fogo celular das imagens devorava. Era uma vida que absorvera o mundo e o abandonara depois, abandonara a sua realidade fragmentária. Era compacta e limpa. Gramatical”.
Embora a proximidade da morte seja um tópico recorrente em Servidões, nem há aqui melancolia alguma, nem o corpo que se lê nestes poemas dá grandes sinais de decadência física.
Mas a verdade é que nenhum corpo real, tivesse ele 30 ou 80 anos, pôde alguma vez plausivelmente corresponder à energia sexual desta escrita. O que é realmente digno de assombro não é tanto isso, é um cérebro de 82 anos ser capaz desta intensidade criativa.
