Corpos, Gêneros, Sexualidades, com textos reunidos da Professora Fatima Lima, é uma obra acadêmica pelo avesso, mas também é o avesso disto.
No primeiro sentido, ela usa a produção de saber de uma série de autores, que tematizaram a relação entre saber-poder-subjetividade e luta pela liberdade de uma forma inovadora no mundo pós-68 do século XX, para situar as temáticas das lutas por reconhecimento das mutidões queer como uma etapa fundamental para a construção da democracia.
Sendo assim, como forma de luta e resistência ao padrão heteronormativo, a autora utiliza a produção de Michel Foucault para desmontar a aliturgia médico-psiquiátrica, que fundamenta as práticas de governo pela verdade que buscam sujeitar os corpos não-heteronormatizáveis.
Ela demonstra também a sagacidade da máquina de controle de corpos e de produção de subjetividades construídas pelas práticas biopolíticas mais recentes, que procuram assimilar as diferenças pela construção de multiplicidades de identidades capturáveis pelo fetiche da mercadoria.
Neste sentido, denuncia a proliferação da farmacopornografia como mecanismo de captura e subjetivação, capaz de gerar a mais-valia, não pela exploração do trabalho pelo detentor dos meios de produção, mas por fazer os corpos trabalharem a favor do consumo desenfreado de fontes excitações “sexuais”.
Esta capacidade de fazer os corpos biológicos trabalharem regulados pelo fetiche da mercadoria, não mais sujeitos aos regimes disciplinares rigorosos do século XVIII, é o que a autora chama de biocapitalismo moderno.
O avesso do acadêmico, tomado em sua pretensa isenção metodológica, é, portanto, o caráter de denuncia militante e de manifesto dos textos.
Mas é também o avesso disto, porque é acadêmico no sentido pleno, já que devemos reconhecer que toda produção acadêmica é fruto de uma agir militante.
E não se pode fugir do valor do valor que condiciona a visão e paixão do pesquisador pelo seu objeto. E qual é o objeto que fascina e move a autora?
O objeto é a tensão que existe entre (1) entender, descrever e acolher os significados das múltiplas identidades trans, entendidas como produção cultural, em toda a sua potência criativa e subversiva, e (2) compreender que estas identidades são também produções biopolíticas em senso estrito e denunciar como elas podem ser mecanismos de sujeição potentíssimos.
Na verdade, esta tensão é constitutiva de todas as lutas sociais e políticas atuais. Por um lado, não há como não ser solidário com a escolha da forma de vida que as pessoas fazem em uma dada cultura, desde que ela não seja fonte de crueldade e humilhação do outro.
Por outro lado, as práticas de sujeição aos estilos de vidas que a cultura quer impor a cada uma das identidades devem ser denunciadas e combatidas, quando se reconhecer que elas são fontes potenciais de perda de autonomia e ao direito à busca de uma vida lograda e mais solidária.
Corpos, Gêneros, Sexualidades se equilibra neste delicado balanço de afetos que a autora tem com seu objeto: em um braço, solidariedade, curiosidade e admiração, no outro, necessidade de denúncia dos possíveis efeitos deletérios das capturas subjetivantes irrefletidas.