A primeira versão de Maíra me saiu por razões terapêuticas. Eu a escrevi para sair da surmenage em que caíra no meu exílio uruguaio, e que já não me dava paz nem para dormir ou para ficar acordado. Estava extenuado pelo esforço de escrever o primeiro texto de minhas teorias antropológicas: O processo civilizatório. Quase perdi o senso. Quando a incapacidade tornou-se evidente, procurei um médico que me disse, em voz firme, que eu tinha que descansar mesmo, porque a surmenage, quando se instala forte, pode tornar-se permanente, incapacitando o cara para qualquer trabalho intelectual.
Meu programa de cura foi ir para uma pensão de repouso, proibido de tocar no livro que me deixava insano. Estava tão transtornado que fui procurar repouso, durante o inverno, numa hospedaria de verão. Tão aberta aos ventos frios que o gerente recomendou que me hospedasse na casa de uma velha italiana.
Fui ter lá. A cama era fofa, e a lareira estava sempre acesa. A italiana só me olhava, estranhando. Um dia esquentou, na lareira, uma garrafa do vinho que ela mesma produzia e pôs na minha mesa de almoço, dizendo: “Disso é o que o senhor precisa.” Bebi. Foi um pileque medonho. Mas me deu um estalo. Percebi que a obsessão em que estava atolado era como um polvo metido na minha cabeça. O único modo de escapar dele era pôr lá dentro outro polvo.
Comecei, instantaneamente, a escrever Maíra. Creio que ele preexistia dentro de mim, como uma possibilidade, pronto a ser vomitado. Trabalhei dias nisso, com crescente apetite pelo macarrão, pelo vinho e também pelo carinho da ítala. Ia adiantado no meu novo ofício de romancista-terapêutico, quando percebi que estava curado da surmenage. Não descansara nada, como me pediram. Antes, me cansara. Mas cansei fazendo coisa diferente. O certo é que voltei para casa hígido de corpo e de mente e, três meses depois, entregava o Processo ao editor. Maíra lá ficou esquecido, mesmo porque eu já estava engajado demais na escritura de As Américas e a civilização, procurando a explicação da causa do desenvolvimento desigual dos povos americanos.
A segunda versão de Maíra me surgiu inesperadamente numa prisão a que fora recolhido ao retornar ao Brasil, em 1969. Creio que o fiz para ter com quem conviver, já que me condenavam ao isolamento interno, proibido de falar com qualquer da centena de soldados e sargentos que rondavam por ali. Nos primeiros dias, me puseram como castigo, por pura malvadeza, numa infecta prisão de soldados, cheia de outros subversivos. Mas, três dias depois, fui separado deles, e me deram como prisão a sala de pingue-pongue do clube dos cabos, numa precária construção de tábua com paredes de meia-água.
Maíra
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