
Em 1957, o jovem paraibano Ariano Suassuna escreveu O Santo E A Porca, onde salienta-se a mistura do religioso e do profano, a presença da música e dos personagens – altamente cômicos, inseridos no universo e na ideologia da região.
Seus protagonistas não se identificam com aqueles que detêm posições de mando e as autoridades se revestem de um caráter distante e negativo. Os alicerces de seu trabalho são baseados em algumas técnicas da literatura de cordel e nos folguedos populares nordestinos.
Sucesso há mais de quatro décadas, O Santo E A Porca, uma comédia dividida em três atos, narra a história de Euricão Árabe, um velho avarento, devoto de Santo Antônio, que esconde em sua casa uma porca cheia de dinheiro.
“Para isso, gostaria de esclarecer que, em certo sentido — e somente assim, porque, no fundo, isto é uma simples história —, O Santo E A Porca apresenta a traição que a vida, de uma forma ou de outra, termina fazendo a todos nós.
A vida é traição, uma traição contínua. Traição nossa a Deus e aos seres que mais amamos. Traição dos acontecimentos a nós, dentro do absurdo de nossa condição, pois, de um ponto de vista meramente humano, a morte, por exemplo, não só não tem sentido, como retira toda e qualquer possibilidade de sentido à vida.
É desta traição que Euricão Arábe subitamente se apercebe, é esta visão perturbadora e terrível que lhe aponta os homens como escravos — como escravos fundamentais e não só do ponto de vista social, como um crítico entendeu que eu apontava —, isto é, como eles próprios se veriam a cada instante, não fossem as preocupações, a cegueira voluntária e involuntária, as distrações e divertimentos, a covardia, tudo enfim que nos ajuda a “ir levando a vida” enquanto a morte não chega e que faz desta aventura — que se fosse sem Deus era sem sentido — um aglomerado suportável de cotidiano.
Para indicar isso, aproveitei, entre outras coisas, a circunstância de ser Euricão Engole-Cobra um estrangeiro, um “arábe”, como se diz, no sertão, dos sírios, árabes e turcos enraizados, e insinuei, através disso, nossa própria condição de desterrados: “Não temos, aqui, cidade permanente” (Hebreus 13,14).
Detesto os símbolos: quando Euricão fala nisso, não está simbolizando nada nem ninguém, o que prejudicaria, a meu ver, sua vida de personagem de teatro; está aludindo a uma circunstância real, pelo que me permiti essa exceção que, não prejudicando a vida e a verdade do personagem Euricão, pôde servir para dar à perda da porca o sentido do absurdo de toda a vida. Porque a perda da porca é muito grave no caso particular dele.”
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