Tudo está dito. Só resta sentir, por sua vez, a desoladora lucidez de Bernanos lendo Sob O Sol De Satã. Não resumirei a história, isso significaria privar aqueles que descobrem este livro do prazer de devorá-lo como um romance policial, perguntando-se: “Quem foi?” O diabo ou Deus? Esta é a grande questão do livro, até essa cena incrível, na última parte, em que o padre Donissan tenta fazer um milagre ressuscitando uma criança morta.
O que poderia lhe dar essa força sobrenatural: o ódio ou o amor? Esse dilema é representado por Bernanos de maneira grandiosa. Primeiramente, o confronto entre Mouchette, que a mentira e o mal fizeram com que ficasse exterior a ela mesma, e o padre Donissan, que para salvar Mouchette do vazio deve enfrentar ao mesmo tempo o desespero e o diabo, obriga o leitor a voltar à fonte misteriosa onde tudo está ligado: a angústia e a fé, o riso e as lágrimas, a dor e a alegria.
Louis Émile Clément Georges Bernanos, que nasceu no dia 20 de fevereiro de 1888, em Paris, não tinha nem a estatura, nem, sobretudo, a ambição de ser “das letras”. Aliás, nunca terá essa ambição. “Não sou escritor”, ele escreverá no prefácio de Os Grandes Cemitérios sob a Lua.
“Só de ver uma folha de papel em branco a minha alma fica esgotada. O tipo de recolhimento físico que esse tipo de trabalho me impõe é tão detestável para mim que eu o evito sempre que possível. ( … ) Escrevo nos cafés e nos vagões de trem para não ser vítima de criaturas imaginárias, para reencontrar através de um olhar lançado ao desconhecido que passa a medida certa da alegria e da dor.”
A alegria e a dor: desde o primeiro de seus oito romances, Georges Bernanos retratou as modalidades mais radicais da condição humana. Foi o que surpreendeu os leitores de 1926 – não quinhentos, mas cem mil -, é o que surpreende os leitores de hoje.
É impossível ler Sob O Sol De Satã sem ver imediatamente que a redação deste livro, envolto por trevas, provém ao mesmo tempo de uma necessidade íntima, de uma aventura interior e de alucinações familiares – sem os truques, sem as trapaças e os artifícios narrativos que uma prática constante do “ofício” literário permite dominar com o tempo.