Designadas pelo próprio autor como “narrativas fantásticas”, as duas novelas aqui reunidas foram publicadas pela primeira vez nas páginas do Diário de um escritor, publicação mensal redigida por Dostoiévski entre 1876 e 1881.
Em A dócil, um homem desesperado refaz, diante do cadáver da mulher, a história de seu relacionamento, tentando compreender passo a passo as razões que a levaram ao suicídio. Já em O sonho de um homem ridículo, o narrador, a ponto de acabar com a própria vida, adormece na poltrona diante do revólver carregado. Principia então um dos sonhos mais extraordinários da história da literatura, durante o qual Dostoiévski anuncia a possibilidade de uma vida utópica em outro planeta antes de seus habitantes serem contaminados pelo veneno da autoconsciência.
Ambas as narrativas partilham da mesma “introspecção verrumante” que Boris Schnaiderman apontou no protagonista de Memórias do subsolo, livro com o qual estas obras mantêm grande afinidade. Tanto lá como aqui, o escritor russo submete a forma do monólogo a tal intensidade dramática, que o resultado ultrapassa as fronteiras daquilo que nos acostumamos a chamar de literatura.
Peço desculpas aos meus leitores, pois desta vez, em lugar do Diário na sua forma habitual, ofereço apenas uma novela. Mas estive de fato ocupado com essa novela a maior parte do mês. De qualquer modo, peço a indulgência dos leitores.
Agora, a respeito da própria narrativa. Intitulei-a “fantástica”, ainda que eu mesmo a considere realista ao extremo. Mas o fantástico aqui existe de fato, e mais precisamente na própria forma da narrativa, o que julgo necessário elucidar de antemão.
O caso é que não se trata nem de narrativa nem de memórias. Imaginem só um marido, sobre a mesa da casa jaz a sua mulher, uma suicida, que algumas horas antes jogou-se pela janela. Ele está transtornado e ainda não teve tempo de juntar as suas ideias. Anda pelos cômodos da casa e procura atinar com o ocorrido, “juntar as suas ideias num ponto”. Ademais é um hipocondríaco inveterado, daqueles que falam sozinhos. Aí está ele falando sozinho, narrando a coisa, esclarecendo-a para si mesmo. Apesar da coerência aparente da fala, contradiz-se várias vezes, tanto na lógica quanto nos sentimentos.