
Na primeira página de seu História do Cerco de Lisboa, José Saramago lembra, muito a propósito do enredo do romance (mas não só…), que “o interesse da vida onde sempre esteve foi nas diferenças”. O livro Conversões De Maruland, das irmãs Adriana e Andreia Falqueto Lemos, poderia tomar esses quase-aforismos saramagueanos para si.
Para ficar em apenas dois motivos, basta lembrar: que o enredo de Conversões De Maruland gira em torno de duas adolescentes com dificuldades (não apenas as próprias de ser e de ser adolescente, mas também as dificuldades inerentes a ser cadeirante e cego em uma sociedade como a nossa) e que se trata de uma obra juvenil, na multiplicidade de sentidos que o adjetivo comporta.
A obra ficcional, gravitando o domínio do fantástico e trazendo diálogos com as narrativas de RPG e dos mangás ocidentalizados, dá-se a ler como a história de Maru e de sua amiga Heloísa, em face de alguns dilemas e desafios da idade: a perda e constituição de referenciais, a dramática oscilação de estados emocionais, o início da vida amorosa, a rejeição e a aceitação em grupos mais ou menos estabelecidos, a independência em relação aos pais.
No bojo das discussões em torno da necessidade de quantificar e qualificar a produção literária juvenil brasileira, justifica plenamente a existência de Conversões De Maruland o interesse temático e a lacuna no contexto literário local (e, de certa maneira, também nacional) de uma produção e publicação de obras que ocupem o vácuo na transição entre a literatura que identificamos como sendo para crianças e a literatura que não exige outros qualificativos.
Adriana e Andreia escreveram Conversões De Maruland ainda adolescentes – e agora, adultas, o reinventam e trazem a público, pela Editora da Universidade Federal do Espírito Santo, sem, contudo, pretender transformá-lo no que ele não é ou nunca foi. Uma, professora, tradutora e pesquisadora das inter-relações entre videogames e literatura; a outra, artista plástica, com consistente produção em fotografia e pintura.
A identificação do leitor não é com a produção mais madura de ambas, mas com as adolescentes que elas foram, que nós fomos: mesmo que aceitar isso seja, às vezes, tão doído. Desta possibilidade de identificação ressalta o mérito de Conversões De Maruland: facultar ao leitor em formação (e quem de nós não o é?) que se projete, que se sensibilize, que indague, que discorde, que odeie, que amadureça. E não é isso o que importa, afinal? Então, que a literatura não nos deixe esquecer, nos ajude a compreender e nos permita imaginar.
