Como reconhecia, em meados do século passado, o futuro professor de higiene da Faculdade de Medicina da Bahia, Claudemiro Caldas, a reflexão médica sobre a sífilis passava então por uma verdadeira “revolução científica”. Iniciada na primeira metade do século XIX, tal “revolução” apenas se consolidaria no começo do século XX, quando se estabilizam as linhas gerais de um modelo de compreensão da doença, que se manteria praticamente inalterado até meados da década de 40. Envolvendo a própria definição da doença – seu agente causal, sua sintomatologia, os meios de transmissão, suas conseqüências orgânicas e sociais, sua evolução epidemiológica e os meios terapêuticos e profiláticos para abordá-la –, este modelo configurou o discurso e, em larga medida, justificou as ações que, em seu conjunto, formavam a luta antivenérea. É em seu âmbito que a sífilis se transformou no problema venéreo, ou seja, em uma das mais graves doenças humanas e em uma das mais sérias ameaças à saúde pública.
Aos olhos dos médicos da passagem do século XIX, o conceito de sífilis tinha sido até então um conjunto de sintomas a um só tempo confusos e inespecíficos, cuja etiologia estivera envolta em metafísica, preconceitos e superstições. O seu caráter de castigo aos pecados da carne a teria mantido durante séculos a meio caminho entre a fatalidade natural e o erro moral, orientando as reações sociais que, sem sucesso, já haviam tentado conjurá-la. Fez mesmo com que, dispensando-se o concurso dos médicos, fosse comum negar-se aos doentes, culpados por seu mal, qualquer tipo de auxílio ou cuidado. Ou, quando havia tratamento, que ele se constituísse de procedimentos que, por conjugarem inextricavelmente punição e remédios, pareciam agora injustos e absurdos. Na Europa, até finais do século XVIII, não nos esqueçamos, eram os hospitais gerais – espaços onde, segundo Foucault, constatava-se uma “quase identidade entre o gesto que pune e o gesto que cura”–, que “abrigavam”, além dos loucos, dos mendigos e dos libertinos, também os venéreos ou sifilíticos, como então se dizia, transformando-se imperceptivelmente uma situação doentia em espécie de atributo do sujeito. No Hospital Geral de Paris, para receberem um tratamento que previa sangrias, banhos, fricções mercuriais, e também confissões, purgações e jejuns, os venéreos somente eram aceitos, segundo decisão de 1679, “sob a condição de se sujeitarem à correção, antes de mais nada, e serem chicoteados”. Com o correr do século XIX, esta posição singular da doença parece tornar-se progressivamente incompreensível do ponto de vista da lógica; e, do ponto de vista da ética, dificilmente sustentável.
Tributo A Vênus: A Luta Contra A Sífilis No Brasil, Da Passagem Do Século Aos Anos 40
- Enfermagem, História, Medicina
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