
Dois signos são fundamentais para quem se propõe a apresentar um trabalho literário, a empreender, senão enquanto estratégia, este ato inaugural de leitura: o título e a epígrafe do livro.
Começo, então, pelo título do novo trabalho de Rita Santana – Alforrias, palavra marcada por um elemento da relação escravo/senhor, clímax de um movimento em direção à liberdade.
Poderíamos pensar/dizer: trata-se de uma lírica de temática afrodescendente, e iniciar um percurso em busca dessa marca anunciada.
Dela, no entanto, eclodem dimensões metafóricas que se estendem à condição da mulher frente ao homem (admitindo a possibilidade de um jogo erótico-amoroso) ou à relação do poeta com a palavra.
Trata-se, na verdade, de uma relação suplementar entre planos de sentido propostos nesta leitura, perseguindo reverberações inerentes à própria constituição do discurso literário e, de modo mais contundente, lírico. Como exemplo, destaco o poema “Abismação” – estado equivalente ao poético, faz ecoar o “Alumbramento” de Manuel Bandeira.
Utilizando-se de signos e imagens que remetem ao contexto da escravidão no Brasil – ancestrais, quilombola, alambique, moleque, plantação de mandioca, alforria – Rita Santana constrói, num jogo de remissão de sentidos, outras chaves interpretativas, posto que o alambique é “de saudades” e a alforria é “dos meus cometimentos”. Amorosos? São apenas sugestões de leitura.
Diálogo amoroso revelador da herança afro no universo semântico permeia outros momentos de Alforrias. O signo de territorialidade, anunciado no título do poema “Herdade”, converte-se em par amoroso marcado pela insubmissão e luta obstinada (“És em mim a Herdade. / O feudo imensurável dos meus quilombos”).
Em “Mortes cotidianas”, o sentimento de banzo expressa uma dada condição de mulher. E “Ácaros e culpas” tece uma imagem de separação: “E você seguiu sem mim em diáspora sem par.”
Configura-se no livro Alforrias a existência de uma voz inequivocamente lírica, que se deixa perceber pelo formato como são concebidos os poemas que o integram e pelas peculiaridades com que são tecidas essas vozes.
Note-se que já não falo de uma voz lírica que tudo abarca, mas de uma pluralidade de vozes, todas elas pertencentes à construção poética de um mesmo sujeito: Rita Santana.
Sem dúvida, trata-se da poesia de uma mulher, com suas variadas nuances, que passam a circunscrever lugares discursivos referentes a duas principais linhas de força: a percepção feminina sensorial, corpórea, de si e do masculino, e a afirmação da palavra como o lugar de inserção do poeta no mundo.











