
As tradições de matriz africana cultuadas em Pelotas são intrínsecas à história da cidade, seus costumes e vivências cotidianas. Essas vivências, marcadas pela oralidade, são repassadas de geração a geração, dentro dos terreiros e das casas de umbanda.
O doce no batuque pelotense tem um significado ainda mais forte do que em outros contextos, isso se dá porque os braços e mãos negros que proporcionaram a consolidação deste município como a capital do doce são marcados pela vivência do axé.
Não são mais nos grandes casarões que se servem uma grande quantidade de quindins. É no terreiro. Nas periferias de Pelotas, nas ruelas dos bairros em que estão situadas as casas de santo, permanece viva a tradição doceira no dia a dia.
A economia gerada nas cooperativas de doces é imbricada na vivência de mulheres, na sua maioria negras, que celebram a fertilidade, a doçura, o sagrado através da produção dos doces que serão ofertados às divindades relacionadas a estes arquétipos.
O trabalho desenvolvido pela pesquisadora Marília Floôr Kosby é uma narrativa que há muito precisava ser passada às palavras escritas. “Nós Cultuamos Todas As Doçuras”: convida a repensar Pelotas, um reencontro dos descendentes daqueles que proporcionaram a pujança econômica vivenciada no período charquedor com os seus ancestrais.
Mais do que isso, é a possibilidade de desmistificar um ideário europeizado da “princesa do sul”. Que é doce, mas ao mesmo tempo também carrega na sua história a amargura daqueles que por muito tempo tiveram sua voz silenciada.
Assim como o tambor, o doce exerce a possibilidade de comunicação com a massa mítica ancestral. Cozinhar no terreiro é dar significado aos pressupostos civilizatórios de matriz africana, ter doçura no quarto de santo é um diálogo com a orixalidade e, frequentemente, é também a maneira de anestesiar as dores das mazelas que o racismo ainda produz em nós, vivenciadores do axé.
Diz um provérbio antigo, do povo ioruba, que chuva fina mas constante faz o rio transbordar. “Nós Cultuamos Todas As Doçuras” é uma chuva fina e constante, assim como é constante a resistência do povo negro pelotense, certamente transbordará o rio de sangue que ainda precisa vir à tona para (re)contar a história de Pelotas.
Que transborde em doçura, daquelas que confundem o paladar.
