
Esta obra da moderna dramaturgia brasileira utiliza um gênero herdado do teatro vicentino e transportado para o Brasil pela didática jesuítica — o auto — e conjuga-o com outra forma quinhentista portuguesa, mas que ainda se mantém viva no nordeste brasileiro — o romanceiro.
Com esse efeito de citação, propõe uma outra versão para o descobrimento do Brasil, versão que descobre o que a história oficial encobriu e que ensina o quão efêmeros são os descobrimentos.
O cenário do auto é a paisagem de Porto Seguro. Além das personagens históricas, contracenam neste auto portugueses, índios e negros. Espaço e personagens metonimizam o Brasil e sua pluralidade racial.
Composto em 1980, no período final da ditadura militar, Auto Do Descobrimento rouba dos jesuítas a intenção didática, procurando catequizar os brasileiros (no caso leitores da obra ou público presente à sua representação) para uma outra atitude frente aos fatos e à vida: a reflexão. Sendo assim, o auto é um convite ao pensamento questionador e criativo.
No Brasil, durante os anos amordaçados, a literatura se fez a interlocutora social que o autoritarismo não conseguiu silenciar. Se a ditadura fornecia uma história oficial de onde se suprimiam as heterogeneidades, impondo sua lógica social por meio de uma visão ingênua, teleológica, unidirecional, cabia à literatura iluminar a assimetria entre o representado e a representação, e investir no reconhecimento de que a lógica é produto de constructos sócio-culturais.
É com semelhante intenção desconstrutora que Jorge de Souza Araujo, simultaneamente à celebração da chegada das naus de Pedro Álvares Cabral às águas de Porto Seguro, conta, com letra nova, a velha história para servir de exemplo ao presente.
Se dúvidas podiam ser lançadas à história oficial da Descoberta do Brasil, fato definido no passado, dúvidas podiam ser lançadas sobre o registro histórico de fatos contemporâneos.
Elabora, assim, teoreticamente, a relação do país com sua temporalidade, fornecendo alternativas problematizadoras do racionalismo e monologismo oficiais.
Para tanto, ao se voltar para o emblemático ano de 1500, investe na multitemporalidade, desmontando o tempo cronológico e retilíneo da história, propondo, em contrapartida, a simultaneidade temporal, questionando, por conseguinte, toda a colonização e todo colonialismo.
Auto Do Descobrimento pode inserir-se assim na literatura dita “da resistência”, revelando um outro modo de crer na história que consiste em negá-la como verdade única.
