No limiar da terceira década do século XXI, dominado pelo mundo digital e seus inúmeros artefatos de suporte, pode parecer esdrúxulo falar em cartas e, principalmente, escrever cartas.
Esse sentimento atravessou minhas reflexões desde a primeira leitura desta obra – Marcos Da Constituição Da Identidade Docente: Narrativas Expressas Em Cartas Pedagógicas, pois é cada vez mais inusitado seu uso na era da cibercultura, na qual a utilização do computador ou de outras tecnologias ultrapassa a condição meramente instrumental e tem sedimentado um espaço cultural em que as trocas informacionais redefinem a comunicação entre as pessoas.
Para além da potência e dos avanços tecnológicos da contemporaneidade, parece-me importante demarcar que esse tipo textual do gênero epistolar denominado carta é, provavelmente, uma tecnologia da informação e comunicação das mais antigas de que temos registro na história da humanidade.
Das cartas diplomáticas escritas em tábuas de argila e enviadas entre faraós do Egito e governantes vizinhos, a exemplo das “Cartas de Amarna”, que datam do século 14 antes de Cristo (a.C.), às missivas celebrizadas pelo cinema, o fato é que esse modo milenar, pessoal e intimista de comunicação, que associa o laço social e a subjetividade, permanece fazendo história.
É nessa perspectiva que enxergo as cartas publicadas neste livro e os convido à leitura delas: como narrativas constitutivas do percurso histórico do tornar-se professora e professor, mas também como dispositivo de formação e de pesquisa com potencial para favorecer o desenvolvimento profissional docente e a compreensão de “como” esse processo ocorre.
Neste livro, para as suas autoras e autores, docentes em situação de desenvolvimento profissional pela via da formação pós-graduada stricto sensu, mas também pesquisadores em formação, escrever cartas narrando percursos, descobertas, tensões e tessituras que propiciaram o enfrentamento dos desafios vividos manifesta exercício reflexivo em outro patamar, ou seja, para além da descrição, em busca de compreender as situações e experiências numa perspectiva fundamentada, crítica e situada historicamente.
Cartas que falam, que explicitam, que ultrapassam a circunscrição da mera exposição, que geram um diálogo interpretativo, apresentando-se, por isso mesmo, como metanarrativas.
Sob essa óptica, um escrito pedagógico, posto que a elaboração das 16 cartas deste livro foram/são tecidas por uma ação reflexiva de autoconhecimento que é formadora, assim como também se apresentam como material de pesquisa sobre “como” os professores pensam e aprendem.