Esse Cabelo

O que se passa por dentro das cabeças é mais importante do que o que se passa por fora? Falar de cabelos é sempre uma futilidade? Não necessariamente, até porque, segundo a narradora deste texto belo e contundente, "escrever parece-se com pentear uma cabeleira em descanso num busto de esferovite"

e visitar salões é uma boa forma de conhecer países, de aprender a distinguir modos e feições e até de detectar preconceitos.
Esta é a história de uma menina que aterrou despenteada aos três anos em Lisboa, vinda de Luanda, e das suas memórias privadas ao longo do tempo, porque não somos sempre iguais aos nossos retratos de infância; mas é também a história das origens do seu cabelo crespo, cruzamento das vidas de um comerciante português no Congo, de um pescador albino de M’banza Kongo, de católicas anciãs de Seia, de cristãos-novos maçons de Castelo Branco – uma família que descreveu o caminho entre Portugal e Angola ao longo de quatro gerações com um à-vontade de passageiro frequente. E, assim, ao acompanharmos as aventuras deste cabelo crespo – curto, comprido, amado, odiado, tantas vezes esquecido ou confundido com o abismo mental –, é também à história indirecta da relação entre vários continentes – a uma geopolítica – que inequivocamente assistimos.
A biografia do meu cabelo poderia começar muitas décadas antes em Luanda numa menina Constança, loura furtiva (uma apetecível "menina dactilógrafa"?), paixão silenciosa de juventude do meu avô negro, Castro Pinto, longe ainda de se tornar enfermeiro-chefe do Hospital Maria Pia; ou em como achou sublimes as tranças postiças com que o surpreendi certa noite, depois de uma sessão de nove horas de cabeleireiro passadas no chão, já sem posição para estar sentada, entre as pernas quentes de duas jovens especialmente brutas, que a meio de me arranjarem o cabelo interromperam a tarefa para converterem numa sopa de feijão a feijoada e o arroz-doce sobrados do almoço, e de quem eu sentia nas costas o calor (e um vago odor) do meio das pernas. "Que colosso", disse ele. Sim: talvez a história do meu cabelo tenha origem nessa menina Constança, com quem não tenho parentesco, porém, procurada por ele no comprimento das minhas tranças e nas raparigas do autocarro que, na velhice, pelos arredores de Lisboa, o levava de madrugada à Cimov onde, curvado, varreu o chão até morrer. Como contar esta história, todavia, com sobriedade e a aconselhável discrição?

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