Machado De Assis: O Enigma Do Olhar

Por que escrever ainda sobre o significado da ficção machadiana? Um século de leituras já não terá descido ao fundo da questão, examinando-a pelos ângulos biográfico, psicológico, sociológico, filosófico, estético?

Não seria o caso de revisitar essa ampla e díspar bibliografia que já conta com intérpretes notáveis pela argúcia e erudição, em vez de tentar, uma vez mais, decifrar enigmas que já estariam afinal aclarados?
A empresa, confesso, também a mim me pareceu às vezes temerária; mas se a ensaio de novo, ciente dos riscos que a envolvem, é porque, lidos os melhores estudos sobre Machado, advirto ainda, em face do problema central da perspectiva, um resíduo de insatisfação cognitiva e desconforto moral. E voltando pela enésima vez aos seus romances e contos, sempre me aparece um hiato entre os conceitos da crítica e as figuras do texto-fonte. Talvez esse intervalo seja mesmo infranqueável, se individuum est ineffabile. No entanto, tudo está em diminuí-lo até os limites do possível e procurar responder à questão crucial do sentido, que está no horizonte de toda interpretação literária.
Dizem que a formulação justa de um problema já é meio caminho andado para resolvê-lo. Neste caso, trata-se de entender o olhar machadiano, o que é um modo existencial de lidar com a perspectiva, a visão do narrador, o ponto de vista ou, mais tecnicamente, com o foco narrativo.
Olhar tem a vantagem de ser móvel, o que não é o caso, por exemplo, de ponto de vista. O olhar é ora abrangente, ora incisivo. O olhar é ora cognitivo e, no limite, definidor, ora é emotivo ou passional. O olho que perscruta e quer saber objetivamente das coisas pode ser também o olho que ri ou chora, ama ou detesta, admira ou despreza. Quem diz olhar diz, implicitamente, tanto inteligência quanto sentimento.
O que se tem até hoje como consenso é a qualificação da perspectiva de Machado de Assis por meio de epítetos negativos: cética, relativista, irônica, sardônica, sarcástica, pessimista, demoníaca. Os leitores sensíveis à pátina decorosa da sua escrita compensam a negatividade da impressão geral com atributos de atenuação que, afinal, sempre remetem ao fundo escuro que estaria sendo matizado: estilo diplomático, contido, medido, civilizado, mediador. Um olhar que morde e assopra. Primeiro morde: o barro comum da humanidade (a expressão está em A mão e a luva), embora comum, é sempre barro. Depois, assopra: o barro, sendo barro, é afinal comum a todos.

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Por que escrever ainda sobre o significado da ficção machadiana? Um século de leituras já não terá descido ao fundo da questão, examinando-a pelos ângulos biográfico, psicológico, sociológico, filosófico, estético? Não seria o caso de revisitar essa ampla e díspar bibliografia que já conta com intérpretes notáveis pela argúcia e erudição, em vez de tentar, uma vez mais, decifrar enigmas que já estariam afinal aclarados?
A empresa, confesso, também a mim me pareceu às vezes temerária; mas se a ensaio de novo, ciente dos riscos que a envolvem, é porque, lidos os melhores estudos sobre Machado, advirto ainda, em face do problema central da perspectiva, um resíduo de insatisfação cognitiva e desconforto moral. E voltando pela enésima vez aos seus romances e contos, sempre me aparece um hiato entre os conceitos da crítica e as figuras do texto-fonte. Talvez esse intervalo seja mesmo infranqueável, se individuum est ineffabile. No entanto, tudo está em diminuí-lo até os limites do possível e procurar responder à questão crucial do sentido, que está no horizonte de toda interpretação literária.
Dizem que a formulação justa de um problema já é meio caminho andado para resolvê-lo. Neste caso, trata-se de entender o olhar machadiano, o que é um modo existencial de lidar com a perspectiva, a visão do narrador, o ponto de vista ou, mais tecnicamente, com o foco narrativo.
Olhar tem a vantagem de ser móvel, o que não é o caso, por exemplo, de ponto de vista. O olhar é ora abrangente, ora incisivo. O olhar é ora cognitivo e, no limite, definidor, ora é emotivo ou passional. O olho que perscruta e quer saber objetivamente das coisas pode ser também o olho que ri ou chora, ama ou detesta, admira ou despreza. Quem diz olhar diz, implicitamente, tanto inteligência quanto sentimento.
O que se tem até hoje como consenso é a qualificação da perspectiva de Machado de Assis por meio de epítetos negativos: cética, relativista, irônica, sardônica, sarcástica, pessimista, demoníaca. Os leitores sensíveis à pátina decorosa da sua escrita compensam a negatividade da impressão geral com atributos de atenuação que, afinal, sempre remetem ao fundo escuro que estaria sendo matizado: estilo diplomático, contido, medido, civilizado, mediador. Um olhar que morde e assopra. Primeiro morde: o barro comum da humanidade (a expressão está em A mão e a luva), embora comum, é sempre barro. Depois, assopra: o barro, sendo barro, é afinal comum a todos.

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